Quando os papéis se confundem

Vivemos hoje no Brasil uma situação caótica em que as instituições responsáveis pela nossa proteção e bem-estar não o fazem; em que nossos políticos responsáveis pela busca de nossa proteção e bem-estar, também não o fazem haja vista os escândalos, as delações, as medidas de proteção  in(adequedas) que vicejam diuturnamente como amplamente pela mídia.

Talvez o último reduto em que se espera honestidade, sinceridade e com a busca incessante de proteger a pessoa seja a medicina, o trabalho médico, que desde 25 séculos tem os papéis definidos. Tais objetivo remontam a Hipócrates que orientou e a orientação ainda é bastante atual, ou seja, curar sempre que possível; diminuir o sofrimento quando a cura não se concretizar e confortar sempre. Confortar sempre hoje entendido como orientar, como proteger o paciente e seus familiares.

Este é o papel do médico de uma forma geral e do médico brasileiro de uma forma específica. Do médico brasileiro que há 20 anos vem sofrendo ataques de forma sistemática do governo federal num objetivo claro de denegrir, de diminuir, de desqualificar a medicina brasileira, haja vista que todas as profissões eram regulamentadas e apenas a medicina não era. Foi preciso uma disputa de mais de 10 anos para que a medicina fosse regulamentada o que aconteceu com a Lei 12.842 de 2013.

Este é o papel do médico, mas a quem cabe propiciar as condições para os médicos trabalharem? De quem é a responsabilidade de propiciar as condições para a população ser assistida, para que a pessoa tenha acesso ao tratamento que ele necessita? A resposta é simples. Cabe ao governo federal que detém todos os recursos e toda a estrutura para tal. A responsabilidade de acordo com a nossa Carta Magna é clara e em seu artigo 196 lembra que “a saúde é um direito de todos e um dever do estado”.

Entretanto, são as pessoas, as autoridades que interpretam e decidem, desta forma temos um ministro da saúde (engenheiro), que num cálculo simples e primário próprio dos problemas aritméticos concluiu que o médico brasileiro não trabalha, e aproveitando do espaço garantido pela mídia e protegido pela imunidade insultou e desqualificou a medicina e os médicos brasileiros.

Tal crime foi semelhante ao fazer um acordo criminoso com Cuba e “importou” milhares de médicos cubanos, em que se gastava por médicos cubanos mais de 4x o que se gastava por médico brasileiro usando de mentiras e argumentos falsos ao arrepio do bom senso e da transparência.

Pior ainda foi a Coordenadoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde que numa sucessão de crimes contra os doentes mentais e avalizados pelo partido político dominante no Brasil fechou mais 90 000 leitos no Brasil, sem substituição por equipamentos adequados, quando o mais lógico seria reformar, modernizar e instrumentar os hospitais. Com tal política criminosa aumentou o número de doentes mentais nas ruas e nos estabelecimentos mentais, com o beneplácito, com a cumplicidade das autoridades sanitárias.

Em Campo Grande não foi diferente. O Serviço de Psiquiatria da Santa Casa de Campo Grande serviu de referência ao que se tinha de mais moderno, de mais humano no atendimento ao doente mental. Seu modelo foi exaltado e os estados foram exortados a segui-lo.

Mas tinha um problema. De um lado o Ministério da Saúde com a sua política equivocada em que se apregoava a não existência de doenças mentais, portanto, não precisavam de tratamento. Com esta politica, não só fecharam leitos, como também numa manobra de estrangulamento econômico pagavam cada vez com menores valores levando à inviabilidade funcional.

Do outro lado estava a Santa Casa, um hospital construído pela população, historicamente voltado para a assistência à população e atualmente dirigida por uma entidade dita filantrópica, mas de funcionamento semelhante a qualquer estabelecimento privado. Se determinado setor não der lucro deve fechar de forma imediata, ao arrepio de toda a sua historicidade e na busca de elementos que o justificassem.

Protegeu-se atrás da orientação nefasta do ministério da saúde de pagamentos vis para a sua justificativa do fechamento do serviço, hoje relegada a 10 leitos (chegou a ter 60, 30) e que de uma forma progressiva foram sendo estranguladas, talvez para não causar impacto da notícia.

Vale lembrar o valor histórico, arquitetônico da área em se encontra o serviço. Ali está o primeiro centro cirúrgico da cidade Campo Grande, além de outras estruturas de valor histórico médico.

Ainda vale lembrar que neste terreno precioso já se cogitou a construção de 2 torres; de um supermercado, de uma grande loja de departamentos entre outros planos.

Com o fechamento do serviço decidido pela sua diretoria (?) já começaram as tratativas entre a Santa Casa de Campo Grande e o Hospital Nosso Lar. São dois estabelecimentos de natureza diferente, de populações psiquiátricas diferentes. Enquanto a Santa Casa a tônica dos atendimentos é de pacientes agudos, em que se necessitam de respostas rápidas, o Hospital Nosso Lar tem a sua vocação no atendimento de pacientes crônicos e/ou agudizados.

As tratativas entre os dois estabelecimentos continuam através do Serviço Social em que já se combinam o encaminhamento dos pacientes como se fossem mercadorias, ao arrepio deles e de seus médicos assistentes.

A transferência de um estabelecimento para outro é um procedimento médico em que implica que o seu médico assistente deve fazer o encaminhamento, com o histórico do paciente (mesmo resumido), sua evolução e o tratamento atual. Por outro lado, o paciente deve ser recebido por outro médico que será responsável a partir dai pelo paciente.

Em circunstâncias em que a transferência não se dá por motivos médicos como a utilização de recursos não existentes em seu estabelecimento ou para esclarecimento de diagnóstico. Caso contrário, se o médico que assinar o relatório sem ser o médico assistente está cometendo um ilícito ético e o estabelecimento está cometendo um crime.

Da mesma forma o médico que receber o paciente, se não for de outro médico também estará cometendo um ilícito ético, bem como o estabelecimento é co — responsável por tal ato.

O paciente é uma pessoa, não é um objeto que possa ser levado de um lado para outro, a bel-prazer de interesses outros não em função de buscar a melhora médica.

Ainda resta uma questão, também formal. No serviço funciona o Programa de Residência Médica em Psiquiatria em funcionamento há mais de 25 anos. Foi a primeira residência em psiquiatria no Centro Oeste, sendo responsável por mais de 2 dezenas de psiquiatras de bom nível e em atividades, não apenas em Mato Grosso do Sul, como também em outros estados. O Programa é oficial, é reconhecido e autorizado pelo MEC, que tem regras próprias.

É consenso em que os estabelecimentos que possuem programas de residência apresentam melhora técnica e ética e o seu fechamento puro e simples consiste em outro crime.

Enfim, o episódio do fechamento do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa, como foi preparado e como está ocorrendo só mostra quanto o processo foi eivado de mentiras, de falsas informações e principalmente confundindo os papéis.

Juberty Antonio de Souza
Psiquiatra – CRM MS 996  RQE 323
Presidente da Academia de Medicina de Mato Grosso do Sul